SIMPLES

Sobre lugar de fala e suas calorosas discussões recentes, eu aprendi que cada um de nós já se sentiu constrangido nesse mundo, que é um mundo intolerante ainda, estando num lugar de fala legítimo ou bem longe dele.

Eu estive em alguns desses lugares ao longo da vida, e entendo resistência raivosa sim, afinal, sou mulher, foi com quebra de padrões “femininos” muito fervorosos que comecei a vomitar novas regras para o meu mundo. Portanto talvez esse seja o meu lugar mais genuíno, embora branca, heteronormativa e de situação financeira estável atualmente.

Essas características  até poderiam ser relevantes para me garantir certa tranquilidade emocional, mas não foram suficientes. E confesso que estava achando um tanto ridículo externar e admitir que minha miséria interior era de fato considerável e não mero capricho pequeno burguês, de quem não tem problemas reais e inventa dores para dar alguma importância a própria existência ou chamar a atenção. Fato é que mais uma vez deixei que opiniões reducionistas baseadas em esteriótipos maldosos fizessem com que eu me autodepreciasse da maneira mais cruel possível, me causando ainda mais tristeza. Tristeza profunda mesmo, nem mais nem menos importante do que qualquer outra de alguém que tem problemas sérios, apenas tristeza.

Os motivos desse sentimento não podem e não devem ser julgados por ninguém, o que eu faço com isso talvez. É por isso que decidi não tentar diminuir o que sinto por vergonha sem ao menos tentar criar uma conexão com pessoas que sei que podem estar nesse mesmo lugar onde estou agora e fazer disso algo produtivo. Pode ser que nos últimos textos que escrevi há sete meses, que foi quando ainda estava com “esperançares” renovados eu tenha esboçado algum entendimento em relação a isso, mas creio que agora ele tenha se acomodado melhor em mim.

Eu me sinto sozinha e impotente, não por estar em um lugar de opressão renitente, pois embora seja mulher e tenha vivido situações de assédio, nenhuma delas, por sorte, mas principalmente por privilégio marcaram meu corpo ou minha mente com traumas violentos.

Mas tenho descoberto que esse meu sentir vem da culpa, eu poderia dizer que são as pessoas, as situações, mas os motivos externos não são os mais fortes, é a maneira que lido com eles que me constituem.

Não, eu não posso falar da dor de uma mulher estuprada, mas eu posso contar o que senti quando soube aos treze anos do estupro coletivo que uma amiga sofreu. Também posso dizer da dor que sinto agora por não ter tido informação e orientação suficiente para fazer alguma coisa, e dor ainda maior por lembrar que a força do patriarcado é tão potente que eu questionei, mesmo que por alguns instantes se ela não havia provocado aquela situação pelo fato de já ter ficado com muitos meninos. Essa mesma amiga sofreu estupro por parte do irmão mais velho também, que certamente se valeu dessa condição de descoberta normal para qualquer adolescente para reivindicar seu direito ao corpo dela, já que a mãe, única provedora desse lar, estava sempre fora trabalhando.

Sobre aborto, não tenho lugar de fala de quem já fez ou precisou, novamente por sorte e privilégio, mas me lembro como se fosse hoje da apreensão que sofri ao acompanhar uma amiga, esperar num ponto de encontro sem que soubéssemos onde e como seria, que ela fosse a um lugar clandestino, e ao voltar, ajudá-la a esconder da família as cólicas e o medo de ter dado algo errado. Sempre penso se teria sido diferente se a sociedade não a tivesse julgado tanto, quando da gravidez da sua primeira filha, ela teria sido levada a esse aborto? Ou mesmo se tivesse sido uma decisão mais consciente, o quanto não deveria ter sido mais normal e decente esse processo, não algo doloroso e assustador como foi. E me sinto mal até hoje por não tê-la apoiado incondicionalmente, de novo, graças a culpa cristã e ao patriarcado.

Do lugar de quem sofreu gordofobia eu posso falar, fui ensinada a me odiar e não me aceitar desde bem cedo, dentro e fora de casa, e desenvolvi compulsão por comida por conta de desejar o que era escondido de mim na infância, atitude que interpreto até hoje como rejeição e por mais que eu tente em momentos de fragilidade isso vem a tona de maneira bem selvagem. Homofobia vivenciei também, não da pior maneira, já que não sou homossexual, mas por sofrer repressão em casa com desconfianças de que meu comportamento fisicamente carinhoso com amigas significasse algo diferente da heteronormatividade, o que aparentemente consideravam bem ruim, e eu sinto que se não fosse por esse cerceamento eu talvez tivesse desenvolvido uma sexualidade mais fluida.

Tenho certeza que essas experiências construíram meu feminismo, ateísmo e ativismo contra qualquer tipo de preconceito e desconstruíram todos os padrões sociais limitantes aos quais eu já não me enquadrava mas tinha necessidade de tentar. A disciplina dos corpos e a política da vida alheira nunca foram algo que eu aceitei, não entendo bem de que maneira isso surgiu, mas talvez tenha nascido de coisas pequenas como em criança não poder sentar no chão pra não sujar a roupa. Eu sentia raiva de me sentir aprisionada, eu tenho lembranças antigas dessa raiva, que só piorou a medida que eu fui entendendo mais o que acontecia e a falta de razão daquilo tudo.

Durante um bom tempo transformei todo esse incomodo em revolta, agressão verbal, tinha necessidade de que aquilo que reprimiam em mim se tornasse tão alto que não houvesse a possibilidade de não escutarem, eu queria que alguém ouvisse o que eu sentia, que ajudasse, que tivesse me orientado a fazer diferente, que não deixasse nada do que eu sabia que acontecia acontecer com mais ninguém, mas nenhuma dessas expectativas foram atendidas, só hoje eu consigo enxergar que a dor que sinto agora é resultado dessa frustração com a qual eu preciso aprender a lidar e da culpa que ainda me assombra. E ainda carrego um medo de ser responsável por mais alguém passar por sofrimentos como esses estando sob minha responsabilidade ou perto de mim, não poder fazer nada diante de uma amiga que apanha do homem que vive com ela é um sentimento de fraqueza tão intenso, assistir uma aluna apanhar sistematicamente, criança ser devolvida da adoção, professorxs racistas, tudo isso me tornaram mais consciente, mas me sinto fraca.

Seria mentira se eu dissesse que não sinto raiva constantemente, gostaria de não sentir, mas sei que estou bem longe disso. Entretanto acho que estou no caminho ao perceber que sentir raiva é justo, mas não constrói nada.

Assistir a Hannah Gasdsby contando sua história foi libertador pra mim, durante meu choro convulsivo eu fui fazendo as conexões que ela diz ter como objetivo, foi passando pela minha cabeça tudo que eu poderia ter feito e não fiz, não estar no lugar de fala não quer dizer omissão, as pessoas se esquecem disso ou se escondem nisso, é preciso tomar cuidado, quem não se coloca como antirracista e anti-homofóbico não se conecta. E o que ela disse de mais importante e novamente me fez esperançar “Diversidade é uma professora, diversidade é força, tenha medo da diferença e não vai aprender nada”. Me senti conectada ouvindo sua história, no caminho em transformar minha raiva em compreensão, minha agressividade em acolhimento, me sinto conectada contando o que sinto, “não por reputação, dinheiro ou poder”, como ela bem disse, mas pra diminuir a sensação de solidão e impotência. Ajudemos pessoas como a Hannah com suas histórias, deixemos que ela nos ajude, nos ajudemos sempre, simples.

 

 

 

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