Neste trecho o velho Graça explana um momento de sua infância em que o adulto José Leonardo se demonstra diferente dos outros adultos que o ignoravam. E afirma que esta relação o atingiu e modificou para melhor. Faz-nos refletir sobre a maneira como tratamos nossas crianças. Será com paciência e bondade?
Graciliano Ramos em “Infância”
…”À noite, na casa-grande, dançavam e cantavam. O luar feria pedrinhas alvas nos caminhos. Achei que uma delas brilhava mais que as outras – e José Leonardo obrigou-me a aceitá-la. Conservei alguns anos a preciosidade que faiscava na treva. Num canto de parede, como brasa perdida no borralho, avivava, em horas de aborrecimento e dor, aquelas recordações – a faixa do canavial, água empapando a várzea, bois mansos pezunhando na engenhoca, o mel a ferver nas tachas, danças, cantigas, a plumagem viva das araras. E iluminava a figura que se ia distanciando no passado, fria, digna, tranquila. Bondade diferente das bondades comuns. Não nos atraía, mas inspirava confiança, vencia o desgraçado acanhamento que me embrulhava a língua, escurecia a vista, gelava as mãos.
Fiz numerosas perguntas a José Leonardo, e ele nunca se espantou. Às vezes hesitava, procurava-me na cara o sentido da frase obscura. E a informação vinha, natural e paciente. Sem me haver impressionado em demasia, esse homem deixou-me lembrança que se estirou e me dispôs a sentimentos benévolos…”